terça-feira, 29 de setembro de 2009

Voyer.


Um arroto corta o ar e faz um estrondo que poderia tranquilamente ser comparado a um rugido de leão. Sabe aqueles de caminhoneiro que vem depois de um belo prato de mocotó seguido de uma cerveja? O sujeito colocou todos os seus demônios para fora pela porta da frente e ainda conseguiu acordar metade da vizinhança. Sua mulher lhe cutucou de leve, murmurou alguma coisa mas logo voltou a dormir.
Algumas quadras dali, um cara levava três tiros no peito, pois não quis passar a carteira. Morreu agonizando num urro desumano, bem ao lado de um mendigo que pouco pode fazer, mas que até gostou da companhia. Era uma noite fria e aquele bebê que foi deixado na porta de um estranho, sentia isso na pele. Sua mãe essa altura do campeonato está dentro de um ônibus fugindo para alguma cidadezinha litorânea com o marido de outra e simplesmente se desfez do peso extra. Mulheres sendo estupradas em becos escuros por tiras corruptos, pessoas roubando para satisfazer a própria fome. Era mais uma noite, apenas mais uma maldita noite de inverno e eu só podia escrever. Beber, fumar e escrever. Apenas mais um refém a mercê dos caprichos da escuridão. Às vezes encarava tudo como um repórter policial, mas era pura ficção. A vida está cada dia mais crua e cruel que as minhas sujeiras se aproximam da realidade de uma forma nojenta. Um dia ainda engataria um livro infantil com mágicos e seres sobrenaturais carismáticos e escaparia de toda essa merda. Olhar pela janela buscando esse tipo de inspiração estava acabando comigo. Dei um soco no vidro da janela em um momento de explosão e o sangue misturou-se com pequenos estilhaços de vidro. Uma rajada de vento entrou e anestesiou um pouco a dor. Ascendi um cigarro e sentei no chão. Olhei alguns instantes a mão cortada, apenas isso e cheguei à conclusão que cada corte era uma daquelas injustiças pela noite afora. Fui arrancando cada pequeno caco cravado na pele, como se ajudasse uma daquelas pessoas. Quanto mais tirava mais sangue jorrava e ao fazer isso o cigarro manchou. Algumas cicatrizes não são nossas, mas mesmo assim são gravadas simbolicamente como brasa quente na nossa pele e não existe nada que se possa fazer a respeito. Eu sorria e fumava, repetindo pra mim mesmo que era só mais uma noite, apenas isso.


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